O amor é um ato revolucionário, o novo disco do cantautor Chico César está disponível para audição nas plataformas digitais.
Quando nossos olhares se cruzaram pensamos ambos em exclamar a mesma frase:
– Encontramos o homem!
Exaustos, Chico de Assis e eu havíamos escutado centenas de fitas cassette de candidatos para o Festival Carrefour daquele 1991 selecionando quem participaria das três eliminatórias. Acabáramos de ouvir Chico César pela primeira vez.
Dias depois a apresentadora Rosi Campos bem que poderia anunciá-lo ao público de Campinas, na eliminatória de 30 de junho, dizendo: “Agora, um compositor de quem vocês vão ouvir falar muito nos próximos anos. Seu nome é Chico César”. Claro que não disse e nem poderia dizer isso. Mas estaria certa.
Em julho do mesmo ano Chico concorreu com “Beradêro” na FAMPOP de Avaré com um novo visual sugerido por um amigo: raspou o cabelo dos lados e atrás deixando um tufo no cocuruto, o que acrescentou estranheza à presença cênica insólita condizente com sua música. Foi como também se apresentou na segunda tentativa do Festival Carrefour, o de 1992, chegando a finalista com “Espinha dorsal de mim”. Projetava-se uma carreira de formidável originalidade na música brasileira a florescer na sucessão de canções fecundas e inteligentes, dotadas de uma individualidade de cunho amplamente popular.
Muitos anos depois assisti no Green Note de Londres o show do “India Electric Co.” um inventivo duo (Cole Stacey e Joseph O’Keefe) do circuito alternativo na música britânica. Após a performance, ao me identificar como brasileiro, me surpreendi ao saber que ambos eram conhecedores entusiastas da obra de Chico César. De fato, suas gravações haviam ultrapassado fronteiras, conquistavam admiradores por todas as partes evidenciando sua universalidade.
Eis agora a mais nova porção dessa obra, que cumpre o papel da música popular: guarda o propósito de refletir sua época.
Não chega a ser uma facada. É uma pedrada, uma fotografia na lisura do preto e branco, a mesma que Sebastião Salgado prefere para suas imagens afim de não acentuar cores que distraiam o foco pretendido. As músicas deste CD de Chico César se concentram como fotos realistas em preto e branco dos tempos em que vivemos, sem elementos que possam abstrair a intenção da mensagem.
O titulo da primeira faixa lembra o papel da juventude nos anos 60, pregando na bandeira de paz e amor o gesto revolucionário de contestação da cultura vigente. A introdução endereça ao período em que os Beatles se aproximavam da sonoridade indiana, ao passo que o final segue um procedimento comum na época: desprezar os três minutos de duração permitindo-se a um longo solo instrumental após o fim da canção. Luiz Carlini, da histórica banda paulistana Tutti Frutti, é o guitarrista.
Se o motivo do amor é mais intimista na faixa que se segue, a temática política que irá predominar em quase todo o CD retorna no bluesy “Luzia Negra” que remete mais claramente às nossas origens. Que vida teria tido essa mulher simbolizada no incêndio no Museu Nacional? Em sua morte temporal ela resistiu ao fogo destruidor da coleção de empalhados perdidos na tragédia consequência do descaso. Desta vez o solo de guitarra após a canção é do próprio Chico.
A presença feminina da ancestralidade também é contemplada através da arca sagrada trazida pelas negras procedentes da África cuja falação se faz ouvir pela voz do ator Chico. No refrão, Ori significa “cabeça” na língua Yorubá. É o primeiro Orixá a ser louvado, aquele que acompanha e ajuda a pessoa durante a vida e após a morte.
Predominado pelo motivo sustentado no contrabaixo, “De peito aberto” tem a participação da cantora Agnes Nunes, uma paraibana de 17 anos que estudou em Campina Grande. O conselho final que evoca a presença masculina emparelhada com a duplicidade do gênero é dirigido ao “mané” que na gíria define quem está por fora, um bobão, um babaca.
Abusando de aliterações em ók, o personagem “lók” com voz de roqueiro proclama códigos da juventude transgressora que cultua o dreadlock de Bob Marley. Tem os olhos vermelhos de quem fumou maconha e toma ares explicitamente políticos ao cuspir na tropa de choque desacatando a lei, o poder constituído.
O pano de fundo de “Like” é a comunicação digital na qual dar like, através de um click, significa na linguagem das redes sociais ter gostado de uma postagem. Mesmo sendo uma besteira, uma futilidade.
Ainda na praia das redes sociais, “History” é como uma página de Face Book dando continuidade ao like de um vínculo que não se rompeu. É uma melodia boa de cantar em levada romântico-brega que funciona como um recreio para os temas do que virá nas próximas faixas.
A partir de casos recorrentes no cotidiano paulistano, Chico expõe contradições como a da melhor sala de concertos da cidade se localizar justamente no miolo do consumo de droga, um dos contrastes que, narrados sem disfarce, separam classes sociais em sua face mais cruel sob o cobertor puído. Mais uma vez Chico trabalhou sua voz, agora soando como um Raul Seixas.
Numa mistura de elementos da antiguidade clássica (Homero, fauno, cérbero, Nero) e de citações latino americanas (Nhambiquara, soy perro), Chico celebra e descreve com vigor e festividade o ritual da conquista, seus riscos, aproximações e esperas na vibrante e suingante faixa “Mulhero”. Destacando o arranjo dos sopros combinados com o baixo e a guitarra, Chico acentua os erres do sotaque paulistano e muda o timbre da voz a certa altura. Ao tratar de tantos temas polêmicos até aqui – e sem desprezá-los, ao contrário – nesta faixa é como se o personagem que vai passando pelo disco dissesse: “estou vivo, mas do meu jeito”.
Depois de aludir à Antiguidade, agora um dos mais célebres textos medievais é evocado: O Cântico das Criaturas, de São Francisco de Assis. Contudo, o que o santo queria, uma celebração da paz e da manifestação divina na Natureza, seu xará do século XXI preenche com a agressividade de quem não vai mais se calar diante dos dramas até este ponto já enumerados. “Onde houver o mal, que eu leve o mel“, é o verso que mais diretamente ecoa o canto do santo de Assis. Tal qual na faixa anterior, em “Eu quero quebrar” Chico declara estar vivo e aponta um caminho para mudança, do seu jeito. “Basta, chega pra mim deu”. Não à toa, aqui também Chico César, como já havia feito na primeira faixa do disco, evoca revolução.
Finalizando de modo ainda mais endereçado à situação do Brasil (“república de parentes“), Chico opta pelo reggae, gênero vinculado ao culto da maconha, para denunciar o alastramento fascista em nosso país. Mais uma vez, sua proposta é ambígua, mas aponta mais para a força criativa agressiva: “fogo nos fascistas! Fogo Jah!” (Jah, a deidade jamaicana, idolatrada pelos adeptos da cultura rastafári). É a “Pedrada” de Chico César.
Num canto longo e sem refrão, em atmosfera de cabaré, através da levada com toque de vaudeville, Chico atua com outras vozes em novos registros diferentes, ironizando o que virá quando soprar a “Cruviana”, o temido vento nordestino que procedendo da serra do Ceará varre a Paraíba. Equivale no nordeste ao Minuano do sul. A voz feminina é de Flaira Ferro, pernambucana que, em São Paulo, participou da companhia de Antonio Nóbrega. Aqui a paulada política desce mais uma vez. De modo mais ou menos velado o tom sarcástico das primeiras notas que anunciam o Jornal Nacional junto aos “vendilhões do templo”, apontam o dedo aos que participaram da última eleição. O que é evocado é desmascarado ao mesmo tempo em que se adianta que o dia vai chegar. Versão atual do “Amanhã vai ser outro dia” do outro Chico.
A universalidade da obra de Chico César se dá em todos os sentidos, da variedade rítmica à abordagem temática. Pode-se pois afirmar que, sem jamais renegar sua origem paraibana. Sua meta é interpelar.
Zuza Homem de Mello
Colaborou Bartolomeo Gelpi
Inverno / 2019