Por Jaciana Melquiades
A gente briga por visibilidade e essa briga é coletiva. Pensando em um movimento individual que se conecta na coletividade, vemos diariamente pelo nosso caminho e principalmente na rede, trabalhos que tem objetivos comuns: promover a representação negra na mídia, nos poderes, nos espaços de exclusão, na vida.
O movimento coletivo e organizado tem um histórico muito pouco conhecido e quase nada difundido. Quando pensamos nos movimentos de indivíduos que são somados e acabam dando vulto ao nosso caminhar, às nossas conquistas, fica quase imperceptível. Como historiadora sempre me interessou esse movimento que parece individual e sem importância. Esse movimento que parece ser pela sobrevivência de si, mas acaba por garantir a sobrevivência do NÓS. Usando o gancho do 13 de maio, queria fazer uma digressão… partir pro século XIX:
“A extinção do elemento servil pelo influxo do sentimento nacional e das liberalidades dos particulares em honra do Brasil, adiantou-se pacificamente de tal modo que é hoje aspiração aclamada por todas as classes em admiráveis exemplos de abnegação por parte dos proprietários. Quando o próprio interesse privado vem espontaneamente colaborar para que o Brasil se desfaça da infeliz herança, que as necessidades de lavoura haviam mantido, confio que não hesitareis em apagar do direito pátrio a única exceção que nele figura, em antagonismo com o espírito cristão e liberal de nossas instituições”.
Princesa Isabel, 13. 05. 1888.[1]
Esse é um dos trechos do discurso da Isabel, aquela que intitulam Princesa. Lendo esse discurso poderíamos chegar a conclusão de que a abolição da escravidão foi fruto de um processo homogêneo e oriundo exclusivamente de setores da elite senhorial, uma aspiração “aclamada por todas as classes” e concretizada de forma pacífica. Não haveria, neste sentido, interesses divergentes gerando conflitos entre as partes interessadas… A sociedade fica parecendo, assim, estática e conformada, esperando as determinações dos poderosos e bondosos monarcas, imbuídos do espírito cristão e liberal. Discurso. Tudo isso é discurso dos que pretendiam construir uma “verdade histórica” pautada na branquitude, e continua sendo repetido e ensinado pelos que pretendem fazer a manutenção dos privilégios sociais herdados de uma ideologia racista (eficientemente popularizada e difundida).
O quadro geral no Brasil ao longo dos anos oitocentos revela outra realidade. Quando a “Lei Áurea” foi assinada, conta-se que em média 95% dos africanos já eram formalmente livres, alguns dos quais integravam parte das lutas abolicionistas e da elite intelectual. Uma elite intelectual preta organizada e tomando as rédeas do nosso processo de libertação formal. Há ainda um quadro que me encanta e fascina, que tem relação com ações individuais e que impactaram a coletividade de forma absurda: fugas numerosas caracterizadas como maior ação de desobediência do país. Temos bibliografia que comprova esse rebuliço. Após 1789, uma ideia de liberdade específica, ligada à luta armada e ações definitivas que finalizassem a escravização de uma vez, se espalharam pelo mundo, chegando na América Latina através de marinheiros, de homens e mulheres pretos e pretas.
A aproximação entre homens de diversas sociedades é de fundamental importância para a circulação de idéias, inclusive hoje. Não consigo pensar em meio melhor. Admitir historicamente que homens e mulheres que seriam escravizados e estavam sendo transportados não entendiam o que estava acontecendo é o que uma historiografia branca construiu como discurso. Mas quando conseguimos ampliar nossa lente e olhar de perto os movimentos de homens e mulheres que queriam a todo custo fazer a manutenção de suas vidas em liberdades, conseguimos ver o quanto a escravização foi sempre uma luta entre desiguais, mas com resistência. Pensemos nos contatos entre esses homens e mulheres vindos dos mais diversos lugares de África e, já na metade dó século XIX, vindos dos mais diversos lugares da América Latina: ideias fervilhando, raiva pela liberdade cerceada, estratégias infinitas de libertação e trocas, muitas trocas.
Para contar uma historinha rápida (e apenas umadas inúmeras histórias de resistência preta) e que chegou aqui no Brasil causando mais estardalhaço, chegamos em 1805, e havia um ano que Jean Jacques Dessalines proclamara a independência do Haiti. Proclamou depois de muita luta que dizimou a população branca do então País. Avançando o século XIX, os rumores do acontecido no Haiti circulavam pelo Brasil e contribuía para o aumento do medo da desobediência generalizada. As fontes que temos disponíveis pouco revelam sobre as formas como a idéia de liberdade, vinda especificamente do Haiti por exemplo, fora apropriada e ressignificada por parte da população escravizada, mas há indícios dos olhares da Elite. E aqui faço uma pausa e pergunto: como nós, historiadoras pretas podemos contar nossa história, se as fontes que usamos sempre apontam o olhar dos homens e mulheres brancos e detentores dos recursos finaceiros? A gente lê o medo deles. Agente interpreta o excesso de cuidado. A gente acha as falas que denunciam as ações que eles julgavam perigosas: aí a gente acha nossas ações, nosso combate, nossa luta.
O massacre dos homens brancos na ilha de São Domingos (Haiti) não passou despercebido. As notícias sobre a abolição no Caribe inglês (1832) e principalmente nas colônias francesas (1848) circulavam na imprensa e alarmavam a elite brasileira. Em anúncios de jornais na Corte do Rio de Janeiro são comuns (pesquisa extensa de Flávio dos Santos Gomes) em anúncios de fugitivos, especificações sobre idiomas falados por homens pretos em fuga, já que muitos deles falavam inglês e francês. Estes homens e mulheres escravizados buscavam refugiar-se em navios viajando para outros países da Europa. Há aqui a idéia de rede, uma conexão entre esses indivíduos, que se ofereciam ajuda mútua. Ajuda esta que tem relação direta com colaboração local, particular e individual que impactou a coletividade.
Esta ponte com o passado me é bastante útil para pensar (ou no mínimo problematizar) nossas relações com a coletividade. Movimentos individuais conectados à história podem nos dar a dimensão do poder transformador que temos e que passa despercebido. Nosso movimento ao longo da história em busca de autonomia, respeito e cidadania pode ser percebido nessas grandes mudanças tendenciosamente atreladas à “bondade branca”, mas neste texto específico, busco uma relação entre as mudanças radicais que as ações individuais promoveram no passado e o nosso movimento atual de busca por representatividade que passa pela mediação do consumo de bens. Depois dessa viagem no passado, penso muito no nosso cenário hoje de busca por visibilidade e representatividade. Somos um grande coletivo de indivíduos e sujeitos pensantes e entender que nossas ações individuais fortalecem (ou quebram) a coletividade é fundamental. A gente consegue visibilidade individual e, ao menos na teoria, é a coletividade preta que garante a manutenção dessa representação.
A gente cresce e tem o trabalho reconhecido fortalecendo e sendo fortalecido pela comunidade. Mas a gente precisa continuar esse fortalecimento que, mesmo sendo entre indivíduos, no somatório das ações, fortalece uma rede. Caso contrário, seremos desmantelados… nossa força se perde se ela não é de nós para nós.
As grandes marcas estão descobrindo esses pequenos poderes. O poder que temos de fazer nosso dinheiro circular internamente, o poder que temos de reorientar o mercado (visto que somos maioria populacional), o poder que temos de reorientar as demandas nas empresas. Se não tomarmos cuidado, vamos sendo todos cooptados pela indústria que cria desejos e nos faz, individualmente, consumir o que a mídia nos diz que precisamos consumir: se não tivermos cuidado, somos cooptados a TER os bens de consumo que “nos conferem Status” e assim seguiremos colocando óleo na engrenagem racista que, sob a desculpa de contribuir com o empoderamento preto, nos usa como outdoores em nossas comunidades, nos fazendo de estandartes captadores de recursos. E só. Tem aqui um Monte de assunto que precisa ser desdobrado: representatividade, consumo, comunidade, entre tantos. Vamos falando sobre história e muito. Saber como nos constituímos é fundamental para nosso fortalecimento.
Jaciana Melquiades – É Historiadora, Educadora, Menina Black Power, Produtora • Produção Odarah Bazar e Criadora de sonhos na Era uma vez o amundo e assina a coluna Falando de História no Polifonia Periférica
[1] Princesa Isabel, Fala do Trono: 13 de maio de 1888. In: Moura, Roberto M. 1947- Tia Ciata e a Pequena África no Rio de Janeiro, capítulo 2: De Salvador para o rio de Janeiro.