Show da última sexta-feira (10) mostrou o amor como ferramenta de resistência dentro e fora da arte
Por Barbara Martins
Toda a poesia de Liniker acompanhada pelo fiel bem-querer dos Caramelows de presente para a noite carioca. Na última sexta-feira (10), o show de lançamento do álbum “Goela Abaixo”, liberado em março deste ano, trouxe ao Rio de Janeiro um palco povoado por dez músicos vestidos em tons de vermelho para apresentar versões ao vivo de quase todas as treze faixas do projeto gravado em estúdio. Coros completos, devotos e mergulhados em identificação inundaram o Circo Voador com uma forma de resistência talvez ainda pouco reconhecida: a feita por meio do amor.
Sucessor do EP “Cru” (2015) e do álbum “Remonta” (2016), o “Goela Abaixo” expõe sentimentos amorosos de quando a entrega já foi feita. O medo, as amarras, as cautelas já não existem e tudo o que se vê é o outro e a si mesmo despidos — em todos os sentidos. E é a partir dessa visceralidade, do interior aberto, do estabelecimento mútuo de conhecimentos profundos um do outro, em que também se percebem a força, a coragem e o poder de se permitir amar. Com o estilo singular de unir soul à nova MPB, Liniker e os Caramelows conseguiram imprimir todos esses significados durante a apresentação ao vivo, e a fronteira entre palco e público foi inúmeras vezes transpassada.
Em “De Ontem” (“Seu porteiro me trata íntima”), tocada logo no início do show, as vozes sincronizadas da plateia refletiam as mesmas entonações da cantora paulista e, além de acompanhar as duas backing vocals da banda, se tornaram prova da audição atenta e repetida dos fãs. O mesmo aconteceu em “Boca” (“Não assinei contrato algum, eu vou ser livre e já me basta”), “Beuau” (“Pela contramão, o meu Sol em Leão”), “Calmô” (“O coração tranquilo, coração de alguém”) e na totalidade da poesia falada “Textão” (“Não se trepa em 15 minutos”) — uma ode ao sexo executado com calma, contemplação e carinho. Bastava olhar para os olhos fechados e sorrisos escancarados em meio à cantoria para entender a relevância artística, política e identitária daqueles momentos.
Liniker é uma mulher trans, negra, conhecida pela capacidade vocal e por cantar principalmente sobre amor. Vê-la dançar, livre, feliz, com a roupa de seu gosto e rodeada por uma banda visivelmente dedicada a fazer a música autoral soar o mais verdadeira possível, é no mínimo fonte de esperança para quem também luta pelo direito de existir. A mensagem sutil de “Goela” (“Me afirmo ela e não tem ele não / Se resiste essa canção, acordes são tão iguais”) cantada a plenos pulmões durante o show, não deixou dúvidas da importância de artistas assim não se esconderem no cenário atual.
Perto de fechar a apresentação, “Zero” (“A gente fica mordido, não fica?”) — a música responsável por popularizar Liniker no final de 2015 — fez lembrar que o amor-resistência de todo o “Goela Abaixo” sempre esteve presente no trabalho da artista. “Intimidade” (“Coloca a tua mão em mim que eu deixo”), “Amarela Paixão” (“Afogo teu sono de manhã, ponho os meus pés nos seus”) e “Bem Bom”, produzida por Mahmundi, (“Agora beijo devagar e vou descendo até chegar na parte mais gostosa que dá”) além de destaques, também serviram como lembretes para não deixar de lado o afeto, a leveza e o cuidado, mesmo nos tempos mais sombrios.
Alguns shows servem para dar um sopro de vida a quem precisa. E este não poderia ter vindo em momento melhor.